quinta-feira, 28 de julho de 2011

Dinheiro com Gosto de Sangue

Ando pensando muito sobre segurança no Trabalho....efeito de SIPATS da vida!!!!!! Sendo assim o GRANDE "Èrico Veríssimo" já traduziu ha muito tempo o que minha mente me atormenta.....


DINHEIRO COM GOSTO DE SANGUE
Érico Verissimo

Atravessou o pátio interno da fábrica. Os grandes pavilhões de concreto pareciam estremecer ao ritmo das máquinas. Eugênio ouviu aquela pulsação surda que lhe sugeria o bater dum enorme coração subterrâneo. Ela lhe dava uma vaga angústia, causava-lhe um indefinível temor: dir-se-ia a aflição dum homem que sente no subsolo o agitar-se duma subumanidade que trabalha com silêncio seus propósitos de destruição. O atroar das máquinas era um ruído ameaçador.

O escritório lhe pareceu mais frio e convencional que nos outros dias. Sentou-se à mesa, abriu uma das gavetas, remexeu nos papéis... Não encontrando os que procurava, chamou a secretária, uma rapariga magra de ar cansado.

– Boa tarde, D. Ilsa. Alguém me procurou?
– Não senhor, ninguém.
– Onde estão aquelas folhas que vão para o Ministério do Trabalho?
– Na gaveta do centro.
Tornou a abrir a gaveta e encontrou os papéis.
– Tem razão, cá estão eles.
Pô-los em cima da mesa, tomou da caneta.
– A senhora anda muito pálida e com jeito de cansada. Por que não tira umas férias?

Assinava os papéis automaticamente, sem revisá-los.

Sentia agora um interesse fraternal pela secretária. A criatura tinha um jeito encolhido de passarito doente.

– E a dor nas costas... ainda não passou?
– Às vezes, quando me deito, ela vem.
– Deve ser da posição em que fica quando escreve à máquina. Precisa cuidar-se, D. Jisa.

A moça sorria, meio constrangida.

Eugênio se perguntava a si mesmo o que era que de repente o fazia assim tão solícito, tão atencioso, como um irmão mais velho. concluiu que era porque tinha pena da moça: pena de todos os que sofriam. Por um breve instante se sentiu reconciliado consigo mesmo. Entretanto seu eu puro e implacável lhe cochichou que se ele se demonstrava assim fraternal para com a secretária e para com os outros empregados da fábrica era para com essa atitude comprar a cumplicidade, a boa vontade e a simpatia deles. Porque todos ou quase todos sabiam da sua situação de inferioridade naquela firma. Não passava dum manequim, dum autômato que assinava papéis preparados pelos que realmente entendiam do negócio, pelos que trabalhavam de verdade mas que no entanto, em questões de ordenado, se achavam muito abaixo dele. Aquela gente sabia que ele ali era apenas o marido da filha do patrão. E, mostrando-se benevolente e atencioso, ele como que procurava comprar-lhes pelo menos a tolerância, já que a simpatia não era possível.

Escreveu o nome com raiva, a pena rasgou o papel, um pingo de tinta saltou e espalhou-se no centro da folha. A secretária avançou com a prensa de mata-borrão.

– Obrigado.

O telefone tilintou. Eugênio levantou o fone ao ouvido.

– Alô! Aqui fala Eugênio. (Tinha escrúpulos de dizer “doutor” Eugênio, podia parecer um acinte aos que não eram formados, ou uma exibição vaidosa) – Quem?... ah!...

Ficou escutando em silêncio, enquanto seu rosto se enevoava numa expressão de contrariedade.

Repôs o fone no lugar e ergueu-se. No pavilhão no 3, o chefe das máquinas o esperava. Tinha apanhado um de seus homens a escrever imoralidades numa das paredes do lavatório. Queria que Eugênio visse com seus próprios olhos. Tratava-se dum operário chamado Galvez, que já estivera preso como agitador comunista: Era um sujeito perigoso – garantia o chefe das máquinas –, um tormento de desordem.

Eugênio encaminhou-se para o pavilhão no 3. Ia contrariado. Tinha horror a questões daquela natureza, era-lhe desagradável tratar com o pessoal da fábrica, resolver pendências, dar conselhos, aplicar sanções... Seria mil vezes melhor viver longe de todas aquelas coisas!

– Galvez é um patife! – disse o homem com os lábios apertados. – Venha ver.

Seu rosto era uma máscara de pedra.

– Onde está ele?

Entrou. Deu três passos sobre o chão de cimento do pavilhão. E, como ao sinal dum invisível e cruel contra-regra que estivesse apenas esperando a sua entrada em cena, algo de pavoroso aconteceu.

– Galvez! – berrou o alemão.

Sua voz, que tinha uma qualidade metálica, soou acima do surdo matraquear das máquinas. Eugênio olhou na direção em que o outro lançara o grito. E viu, horrorizado, que a polia grande de uma das máquinas naquele instante apanhava o corpo dum operário. Ouviu-se um grito agudo. O corpo rodopiou enrolado na polia e depois, como um boneco de pano, foi lançado ao ar, caindo longe no meio de outras máquinas. Houve um momento de atarantamento. De todos os lados partiam exclamações. O alemão precipitou- se para a tábua dos comutadores e puxou a chave geral. As máquinas pararam. O silêncio que se seguiu gelou o sangue de Eugênio. Os homens correram numa só direção. Trouxeram depois um corpo ensangüentado e o puseram aos pés de Eugênio, como se – deus cruel – ele tivesse pedido aquele sacrifício. Fazendo um enorme esforço para vencer o tremor das pernas, ele se inclinou. Não havia mais nada a fazer. O crânio do operário estava todo esfacelado, seu rosto absolutamente irreconhecível. O corpo perdera quase a forma humana. No chão ao redor do cadáver, se formava uma poça de sangue.

O pavor estrangulava aqueles homens, reduzindo-os ao silêncio. Os olhos do chefe das máquinas se conservaram frios e seu rosto era uma máscara inumana de pedra.

Quando tornou a sentar-se à sua mesa, Eugênio teve a impressão de que saíra dali não apenas havia vinte minutos mas sim vinte anos. Sentia-se mais velho, mais cansado e amargurado. Ficou com os cotovelos fincados na mesa, as mãos segurando o rosto, a olhar fixamente para o tinteiro. Do pátio interno chegava até ele, através das janelas, um rumor de vozes

– Mandem tocar de novo as máquinas – disse o gerente.– Não podemos ficar parados. Tempo é ouro.

Ouro... Por que era que os homens não se esqueciam nunca do ouro? Ouro lhe lembrava outra palavra: sangue. Tempo também era sangue. Ouro se fazia com sangue.

Trecho do livro Olhai os Lírios do Campo, Porto Alegre, Globo, 1981.